segunda-feira, maio 08, 2006


É choro não poder falar

Bright eyes,

Hoje apeteceu-me falar-te e, claro, não me atendeste o telefone.

Há já uns tempos que não saímos todos.

Há já uns tempos, também, que não rimos juntas e falamos, alegre ou seriamente sobre o nosso mundo.

Lembro-me da centelha viva nos teus olhos pardos em troca de confidências, da gozona cumplicidade que nos unia, do teu riso solto e contagiante. Lembro-me do ar sério que punhas no ecumenismo quando divergíamos em relação ao teu deus, esse mesmo a quem rezaste pelo meu filho, esse que – dizias tu – te emprestava força para, todos os dias, ma transmitires.

Lembro-me, ainda, da coragem e da dignidade com que perdeste uma boa parte da tua fortuna e, com ela, os falsos amigos que te rodeavam.
Tu e o António – então gravemente doente – dispensaram o chauffeur, as mordomias e as grandes colecções, restando-vos um conforto elegante e um punhado de "irredutíveis" que não chegou à dezena.
Perante a minha revolta, lá vinha o teu deus à baila:
- Deus escreve direito por linhas tortas – insistias tu nessa frase feita sem significado – se isto não tivesse acontecido, nunca saberia quem eram os meus verdadeiros amigos.
- Ora, ora, os amigos reconhecem-se nas dificuldades e essa ordinareca meio-pseudo que babava com o lustre da tua avó, foi deus que a chamou ou foi ele que lhe disse que se fosse embora?
- Ai, Francisca, não percebes nada! Deus põe-nos sempre à prova, eu ganhei e ela perdeu!

Impossível…

Aqui há menos de um ano, a meio de um jantar dessas noites de sexta-feira de perdidos fados e guitarradas, falaste-me de um tumor que te tinham descoberto. A tua voz era firme quando falava do medo, mas os teus olhos pardos e brilhantes reflectiam a luz tremulinada da vela à nossa frente.
Abracei-te – aproveitei o momento para reter as lágrimas com que me tinhas contagiado – e lembrei-te a frase da tua mãe nessas ocasiões: "Olhe Manel, veja lá se me trata porque, agora, não me apetecia nada morrer!"
Os teus olhos voltaram a sorrir e o fado calou-nos.

A tua operação correu bem mas, quando te fui ver (e te beijei a cabeça que insiste em rapar) tinhas uma canula na garganta e escreveste numa folha de bloco que me entregaste: "É choro não poder falar".

Seis meses depois, cabelo à rapazinho, celebraste, e nós contigo, a total recuperação.
Os teus olhos, minha querida, os teus brilhantes olhos, flamejavam de risonha vitória.

Antecipámo-nos, toda a vitória é efémera.

Passados três meses, minavam-te metástases sem explicação.
Era uma questão de tempo…
Dispuseste para a vida que te restava:
- Mais citostáticos não. Quando entrar em coma não quero internamentos, quero que me deixem morrer.
Foi há um mês… duraste tão pouco.

Bright eyes,
Burning like fire.
Bright eyes,
how can you close and fail?
How can the light that burned so brightly
suddenly burn so pale?
Bright eyes…


O que tu te ririas se estivesses, agora, aqui comigo. Imagina que quase todos os dias rezo. Uso a medalha que o António me entregou em teu nome na pulseira (vê o piroso da coisa) e, afagando-a, rezo a única oração que conheço dessa religião e peço a um deus impossível que se invente e te não desiluda, a ti que já não existes, mas que não me és, ainda, só memória.

É que eu telefono-te e tu não me atendes… tinhas razão: É choro não poder falar.